Quem leu a crônica #5 (Quando a educação é especial),
conheceu Miguel, um garoto que consegue mover apenas os olhos, o dedo indicador
da mão direita e levemente a própria mão direita. Para os que ficaram com lágrimas
nos olhos, resolvi escrever sobre uma outra situação, mostrando que a vida
desses heróis também pode ter bons momentos.
Hoje o dia não está cinzento. Ao contrário daquele dia,
hoje as nuvens fugiram, deixando um azul como raramente se vê lá em cima. Sob
esse sol radiante Miguel e seus pais chegam à casa do seu primo, Hélcio, para
almoçarem numa sexta-feira santa.
Seu pai o retira do carro e o posiciona na cadeira de
rodas, tendo o cuidado de já acionar a sua interface com o mundo – um
smartphone – num suporte que fica à frente da mão direita. Na casa, são
recebidos pelo próprio aniversariante, um garoto rechonchudo que é um ano mais
jovem que Miguel.
– Oi tia, tio. Bom dia Miguel, elegante você, heim?
Podem entrar.
Miguel está usando um suéter azul claro, seu preferido,
colocado cuidadosamente por seu pai a um pedido seu.
Lá dentro, estão todos na sala de estar. Sua mãe o
posiciona ao lado do sofá, de frente para as duas primas menores de pouco mais
de dois anos, que brincam em frente à TV. Miguel poderia passar o dia inteiro
observando aquelas duas. Nenhum dos músculos da sua face demonstra, mas Miguel
acha graça em tudo o que as pequenas fazem, e seus pais sabem disso. Ambas estão
naquela época em que começam a dizer coisas como “Oi, tem cocô aí?” enquanto
apontam para o traseiro da outra.
– E as leituras? – Pergunta Hélcio, sentando-se ao lado
de Miguel.
Miguel leva algum tempo digitando a resposta.
[Agora estou lendo Dostoiévski. Um pouco cansativo, mas
muito bom.]
– Ah, você e sua alta literatura! – diz Hélcio, ao ler
a resposta. Logo depois, lê o complemento digitado pelo primo.
[E você?]
– Cara, agora não estou lendo nada – Hélcio fala
baixinho, em tom de cumplicidade. – Claro, até a escola me mandar ler
Graciliano Ramos ou algo do tipo. Mas acho que vou ler também esse Dosto alguma
coisa. Impressiona mais, sabe?
Miguel, por razões óbvias, lê bastante. Na sua condição
de imobilidade, a leitura é a única coisa que o permite viajar verdadeiramente.
Uma fuga da dura realidade, a qual Miguel simplesmente desliga durante algumas
horas, todos os dias.
– O almoço está servido – diz a tia de Miguel.
Todos se posicionam perto da mesa. Enquanto sua mãe o
posiciona ao lado do primo, Miguel vai digitando algo no smartphone.
– Meu pai hoje vai pagar a conta – diz Hélcio, ao ver o
pai sentando-se à cabeceira.
Miguel faz sinal para o primo ler o que ele digitou:
[Piada nova... :-)]
O primo lê em voz alta. Todos riem.
– Ô Miguel, o que é isso? Você digitou isso antes de eu
falar?
– Acho que ele já adivinhava o que você ia dizer – diz o
pai de Miguel, gargalhando.
Hélcio faz uma careta para o primo e senta-se. O almoço
segue no mesmo tom descontraído desencadeado por Miguel.
Amigos e familiares por perto, todos felizes. É
contagiante. Isso é felicidade, não apenas para Miguel, mas para qualquer um,
mesmo para os que não possuem as mesmas limitações. Momentos como esse talvez
sejam menos frequentes para ele, mas agora ele não se importa. Apenas
agradece pela oportunidade de estar ali.