domingo, 24 de fevereiro de 2013

Crônica #10 - Sendo didático

Certa vez minha mãe me perguntou: o que é 3G?

Respondi: É um padrão de telefonia celular.

Impossível uma resposta pior. Padrão de quê? O que é o “3” do 3G? E o “G”, o que significa? Naquele momento não pensei em ser didático. Ponderei que minha incapacidade de dar verbalmente explicações elaboradas faria ambos perderem bastante tempo num discurso que muito provavelmente seria chato. Ensinar a um leigo algo do meu ofício é, para mim, tarefa das mais desafiadoras. Mas, se eu tivesse tido um pouco mais de boa vontade na ocasião, teria dito pelo menos isso: trata-se da terceira geração de padrões de comunicação da telefonia móvel.

Não me leve a mal, nobre leitor. Não costumo ser ranzinza, e na ocasião realmente não o fui. Provavelmente teria dado uma pequena aula caso se tratasse de um desconhecido. Mas sabe como é, santo de casa... Mesmo assim, a aula não teria sido das melhores. Se algum dia eu me tornar um exímio orador, ou docente reconhecido pelos alunos de alguma universidade, terá sido a maior das histórias de superação, de todos os tempos, de toda a humanidade; maior até do que de alguém raquítico e com asma que se torna nadador olímpico e ganha dez medalhas de ouro em três competições consecutivas. Acho que deu para ter uma ideia de como levo jeito para falar.

Mas a vida nos ensina que devemos aprender. Às vezes somos colocados numa posição desconfortável, para que enxerguemos onde erramos. Foi assim num dia em que precisei do suporte de TI de uma empresa onde trabalhei. Precisei daqueles profissionais, que têm a consciência de que nem todos precisam ter a mesma experiência e discernimento acerca do ofício deles. Eles sabem da importância de explicar o que estão fazendo com os computadores dos usuários quando atendem aos seus chamados, mesmo que aquela explicação tenha sido repetida mil vezes naquele dia.

O motivo da minha ligação foi solucionar um problema no software de acesso ao email corporativo que rodava no meu computador. Eu não conseguia mandar mensagem alguma. O profissional foi muito educado, mas pediu acesso remoto ao meu computador e foi fazendo tudo ele mesmo, sem me dar ciência do porque de cada passo. Pedi para que ele esclarecesse o que estava fazendo, e fui atendido.

Percebi como pode ser ruim pedir mais informações a alguém e correr o risco de não as obter. Ter que implorar por mais detalhes ao detentor do conhecimento que, mesmo não tendo a obrigação de ensinar, fica com a imagem de alguém pedante caso não se disponha a ajudar.

Didático. Acho que essa é a palavra que eu deveria perseguir. Devo ser mais didático e aprender não apenas com os exemplos dos bons professores, mas também com aquele que se dispõe a me ouvir.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Crônica #9 - 100g, 200g



– Quero cem gramas de presunto e duzentos gramas de muçarela – disse eu, ao balcão de frios de um supermercado.

O funcionário me trouxe, pouco depois, cem gramas de presunto e cem gramas de muçarela.

– Não, amigo. Você não entendeu. São cem de presunto e duzentos de muçarela.

O funcionário desatento pegou as duas embalagens e errou novamente. Trouxe-me duzentos gramas de presunto e duzentos do queijo. Expliquei novamente.

O energúmeno ainda cometeu outro erro, e eu aceitei as pesagens do jeito que estavam. Instantes depois, já na fila para pagar as compras, me arrependi de tê-lo tratado mal mentalmente. Ele apenas não devia ter recebido treinamento suficiente. Além do mais, talvez eu devesse ter feito os pedidos de forma diferente.

A situação acima, verídica, mostra como um funcionário mal treinado pode causar uma depreciação. Não na qualidade do queijo vendido, mas na imagem da empresa. No caso, se eu não tivesse prestado atenção, minha esposa teria feito o seguinte comentário ao ver as compras em casa: “quem pesou meu queijo?” Analogias com títulos de livros de auto-ajuda à parte, o mundo corporativo está repleto de funcionários que recebem suas tarefas sem treinamento prévio. Tudo bem; as pessoas aprendem a aprender, inferem certas coisas e acabam desenrolando. Mas trata-se de uma questão de produtividade.

Se você pedir a alguém que passou a vida toda programando em Prolog para desenvolver algo em linguagem C, ela pode argumentar que não sabe nada da linguagem. Você diria a ela: “busca no Google.” Nem um livrinho de linguagem C. Somente a vastidão não estruturada da internet, a pequena parte que está ao alcance das ferramentas de busca, já seria suficiente. Seria somente uma questão de tempo até que aquela esponja absorvesse o conhecimento e virasse um craque da programação procedural. Se não virasse, seria por que não teria iniciativa. Não prestaria. Não seria “safo”, e daria lugar a outra pessoa mais “capacitada”. Na velocidade em que os clientes demandam conhecimento específico para projetos ainda mais específicos, é comum preferir gastar uma quantidade enorme de dinheiro buscando alguém já com experiência em vez de formar um especialista em casa.

Em qualquer empresa, especialmente nas que vivem de tecnologia da informação, há sempre algo a aprender. Mas esse “algo” muitas vezes é um conhecimento relativamente estruturado que seria mais bem assimilado com a ajuda de profissionais especializados em ensinar. Muitas empresas subestimam o valor de um bom professor. E claro, há o outro lado da moeda; muitos profissionais superestimam as buscas no Google e não se interessam em comprar livros ou em engajar-se em treinamentos. Aliás, cada vez mais vejo que a iniciativa de atualização, de buscar cursos, deve ser do profissional, que não deve ficar com sua bunda na cadeira esperando por iniciativas dos executivos. No mínimo, ele deve sugerir os treinamentos aos seus superiores e solicitar incentivos às certificações de que precisa.

Já vi tantos profissionais serem jogados em tarefas inéditas a eles que hoje tenho dúvidas sobre alguns dos quais tive má impressão. O que teriam mostrado se tivessem sido bem conduzidos? Existem pessoas que precisam ser conduzidas e existem as que se conduzem. Pessoas sem iniciativa, ou cujo trabalho não exige tanta iniciativa, também podem fazer um bom trabalho. É óbvio. Basta que lhes dêem as ferramentas certas.

No supermercado que mencionei, tenho certeza de que, caso tivesse sido bem treinado, o funcionário teria um bloco de notas preso à cintura e uma caneta sobre a orelha para anotar os pedidos mais extensos, com mais de um item. Alternativamente, teria uma atitude diferente; teria dito simplesmente: “Por favor senhor, uma coisa de cada vez.”

domingo, 10 de fevereiro de 2013

Crônica #8 - Desculpe o transtorno, o técnico vai vim amanhã


Tenho plena consciência de que cometo muitos deslizes ao falar e escrever, e não vou apontar o dedo para aqueles que dizem as duas orações no título desta crônica para acusá-los de assassinos da Língua Portuguesa. Porém, não posso deixar de registrar que elas são capazes, quando lidas ou ouvidas, de interromper meus pensamentos por alguns segundos. São capazes de desviar meu foco, não sei exatamente por quê.

Vamos à primeira: “Desculpe o transtorno.”

Esta frase pode ser encontrada facilmente em placas de qualquer obra de concessionária de serviços públicos. Quando a companhia de gás vai abrir uma pequena cratera para manutenção das tubulações, coloca uma placa com estes dizeres. Quando a concessionária de energia elétrica precisa fazer algum reparo, coloca a mesma coisa, como se o transtorno em si tivesse alguma culpa.

Quem desculpa, desculpa alguém por algo (por favor, corrijam-me se eu estiver errado!). As concessionárias poderiam escrever “desculpe-nos pelo transtorno” ou “desculpe pelo transtorno”. A frase que eles usam me faz imaginar que eles têm algum funcionário que está causando o problema, que é o real culpado, e nos pedem para desculpar esse funcionário que se chama Transtorno.

Eu também já conheci muitos Transtornos na minha carreira profissional. Desde aqueles que não respeitam a vez de falar numa reunião, passando pelos que ficam puxando assuntos alheios ao trabalho e atrapalhando a concentração de todos, até os que têm iniciativa zero para resolver os próprios problemas e se tornam um peso de vinte toneladas para a equipe. Existem ainda aqueles que são Transtornos bem conscientes do nome que carregam, que colocam fotos da família ao redor do computador para evitar serem demitidos, e os Transtornos mal-humorados. Quem leu a crônica em que menciono o famoso Genialdo Okara sabe do que estou falando. Imagine, nobre leitor, como seria um projeto feito por uma equipe de Transtornos; boa coisa não sairia.

A segunda frase traz um erro mais grave, na minha opinião: “ele vai vim”.

Sério, eu entendo quem confunde o infinitivo do verbo com a primeira pessoa do singular do pretérito. São duas formas até parecidas, mas sempre paro o que estou fazendo para identificar quem é o dono da frase, que pode até ser meu amigo. Mas mesmo assim evito ser aquele chato que fica corrigindo os erros dos outros. Às vezes estou bem concentrado no meu trabalho, imerso em algum documento importante a ser entregue no mesmo dia, quando ouço:

“Mas ele vai vim pra reunião?”

Paro o que estou fazendo. Penso: “Puxa vida, o certo é vir.”

“Não. Acho que ele não vai vim, mas Fulana vai.”

Penso: “Quase! Quase que ouço dois na mesma frase.”

“Eu vou vim, Cicrano vai vim. Quase todo mundo vai vim. Acho que a reunião vai ser produtiva. E você, Marcel?”

Aí é covardia. Fica impossível manter a concentração. Aceno com a cabeça e levanto-me para espairecer.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Crônica #7 - Quanto vale uma vida?


Nos meus tempos de boate, já aqui no Rio, eu quase nunca encontrava um estabelecimento que desse qualquer sinal de respeitar o limite de lotação. As casas noturnas entulhavam tanta gente que ficava quase impossível percorrer em menos de alguns minutos os dez metros que me distanciavam do bar. Pedir uma bebida era “um evento”, que precisava de planejamento. Acho que só não deixavam mais gente entrar porque teriam que começar a empilhar as pessoas. Havia inclusive uma boate na Lagoa que era famosa por ser entupida de gente, e faço questão de frisar isso: todos sabiam.

Depois de tantas mortes em Santa Maria, tudo está sendo investigado, e já imagino algum dono de boate dando entrevista ao Fantástico. Apenas o perfil estaria aparecendo, a voz seria modificada para ele não ser identificado, enfim. Ele diria “Todo mundo faz isso. Se a capacidade declarada é quinhentos, a gente põe mil. Se respeitar o limite, a gente perde competitividade, porque teria que aumentar o valor da entrada. Aí a concorrência é desleal.”

Lealdade às vidas dos outros deveria ser o mais importante. E o que aconteceu é a prova de que o jeitinho brasileiro mata.

Lembro que certa vez estava conversando com um alemão. Um colega de trabalho. Ele relatava que costumava dar um jeito de não pagar o estacionamento perto de uma estação de trem no país dele, mas que o funcionário que controlava o local já estava começando a perceber o método que ele e alguns outros usavam para burlar o sistema.

A Alemanha e outros países mais desenvolvidos possuem sem dúvida um sistema educacional muito mais desenvolvido que o nosso, e não tenho dúvida de que eles têm bem mais civilidade que nós. Porém, eles não são santos. O que realmente faz funcionar esses países é a ciência das consequências dos atos dos cidadãos. Eles sabem que serão realmente punidos caso cometam algum crime, e que a pena será aplicada com o máximo rigor da lei. Aqui, quando você vê um criminoso assumir a presidência do senado, assumindo o lugar de outro ladrão, pode realmente pensar que superlotar uma boate é o menor dos crimes.

Na Alemanha, em contraste, se alguém fizer algo errado, será punido e ponto. Se esse alguém foi (ou imagina que foi) um grande herói no passado, que lutou contra a repressão, que ajudou a construir o país, que se acha um mártir, que foi um grande líder político, etc. Ainda assim, se cometer um crime, será punido.

Fico assistindo perplexo às dezenas de fechamentos de casas noturnas e teatros nos últimos dias. Por que só agora? Porque éramos todos coniventes. E agora estamos todos indignados.

Então, nobre leitor, quanto vale uma vida? Sinto terminar a crônica sem saber dar a resposta. Simplesmente não há nada que traga de volta aos lares das famílias das vítimas o que existia antes, que é algo imensurável. Mas sei que aqui, na nossa pátria imensa e alegre, a vida vale bem menos que em outros lugares.