domingo, 20 de janeiro de 2013

Crônica #5 - Quando a educação é especial


O dia está bem cinzento. Desde cedo Miguel já podia prever que aquelas nuvens densas teriam preguiça de se mover e de dar passagem aos raios do sol. Ele não gosta quando o tempo está assim. Sente muito frio, por mais que sua mãe o agasalhe. Com a cabeça cuidadosamente posicionada para contemplar a paisagem que se move, ele observa as pessoas, as ruas, os carros, tudo, menos o céu melancólico, enquanto sua mãe dirige em direção à escola. Aliás, essa é uma das coisas que Miguel mais faz: contemplar. Natural para quem consegue mover apenas os olhos e parte da mão direita. Os músculos da face não obedecem, tampouco obedecem os das pernas, braços, costas e abdômen. Depois de muita fisioterapia, ele conseguiu mover o dedo indicador da mão direita e hoje consegue mover um pouco a própria mão, o que é suficiente para digitar numa tela sensível de smartphone. Mas claro, somente se a mão e o aparelho estiverem milimetricamente posicionados. Com essa pequena interface com o mundo, ele consegue dizer o que quer, como se sente e se achou alguma piada engraçada.

Ao contrário de muitos de seus colegas de escola, Miguel, hoje com quinze anos completados no último domingo, não tem comprometimento intelectual algum. E dada a sua paralisia, tem bem mais tempo para ler do que a média dos adolescentes na sua idade. Quando lê livros em papel, precisa da ajuda de alguém para passar as páginas, mas a presença de cada vez mais livros em formato eletrônico trouxe um bom ganho de liberdade. Ele pode passar horas sozinho, lendo e passando as páginas no tablet cuidadosamente posicionado no seu campo de visão, sem incomodar seu pai e sua mãe.

Incomodar. Esse é o fardo que a sua prisão particular – seu corpo – o faz carregar. Seus pais não podem pagar um enfermeiro em tempo integral, então sua mãe não trabalha. Vive praticamente para ele, o que o incomoda profundamente. Sente-se um peso. Seu pai precisa trazer o sustento da casa, então ele depende dela para tudo, inclusive para alimentá-lo através de uma sonda e para mudar seu corpo de posição com frequência suficiente para evitar hematomas. Seus pais não demonstram, mas Miguel sabe que por vezes estão completamente exaustos. O problema é que simplesmente não há alternativa a essa vida imersa num mar de limitações, sendo constantemente salvo por esses dois anjos que o trouxeram ao mundo.

Parado no sinal de trânsito, Miguel observa uma floricultura que fica numa praça próxima ao cruzamento. Aquilo o faz lembrar-se de casa. Talvez por força de tantas barreiras, uma das coisas que ele mais gosta de fazer é observar o jardim cuidadosamente mantido por seu pai. De todas as flores, ele prefere as orquídeas brancas, que são constantemente tocadas por alguns beija-flores que entram no quintal sem pedir licença. Aquelas orquídeas tão singelas, com uma brancura levemente aveludada, têm para ele mais beleza do que os versos mais inspirados, do que os trechos mais bem construídos de todos os romances que ele já leu. Elas o tranquilizam, fazendo-o esquecer-se por alguns momentos sublimes da dura realidade e da jornada lenta e difícil que é a sua vida.

Poucos minutos depois, chegam à escola. Sua mãe estaciona, sai do carro, monta a cadeira de rodas ao lado do carro e o retira para acomodá-lo. Está nos planos dos seus pais comprar um carro maior, em que ele caiba na cadeira de rodas já montada. Por enquanto, eles seguem usando a própria força para movê-lo.

– Estamos um pouco atrasados – diz sua mãe, enquanto ajeita os cabelos dele e dá uma piscada de olho.

Com a cabeça bem apoiada, Miguel mexe o dedo, sinalizando para a mãe. Ela aciona o aplicativo de edição de textos e posiciona o smartphone no anteparo próximo à mão direita. Ele começa a digitar, lentamente.

“Inclina um pouco mais”

Ela aumenta a inclinação da cadeira de rodas para que ele possa se acomodar melhor. Antes de entrar na escola, ele move novamente o dedo, e ela aguarda a próxima mensagem.

“trouxe o envelope?”

– Sim, claro. Está aqui, na minha bolsa.

Sobem pelo elevador. Depois de passar por um corredor e cumprimentar alguns funcionários, sua mãe entra com ele na sala de aula, que já está com os outro quatro alunos. A professora os cumprimenta e sua mãe deixa a sala. A aula de português é a preferida de Miguel. A aula de hoje é sobre concordância.

Em nenhum momento aquela profissional faz expressão de pena. Pelo contrário. Ali, aqueles alunos representam a normalidade. Ela até repreende quando percebe que um deles não quer participar da aula. Sim, os deficientes também fazem birra quando não estão a fim de estudar. Talvez alguns deles e muitos dos alunos ditos “normais” não vejam propósito naquilo tudo, mas Miguel vê. Os professores que se desdobram para atender àqueles adolescentes, que respeitam o ritmo de cada um e que transformam os pequenos passos dos seus pupilos em feitos gigantes merecem toda a contrapartida daqueles cinco estudantes. Quando Miguel está ali, sente-se tratado de igual para igual por pessoas que entendem as suas limitações; enche-se de esperança, e sente sua vida tornar-se mais leve. Naquela sala, as vicissitudes tornam-se obstáculos contornáveis, e tudo parece possível. Na verdade, alguns dos momentos mais felizes ele passa ali mesmo, na escola, onde além de receber conhecimento, ele se alimenta de futuros possíveis.

Sendo um dos melhores alunos, ele consegue acertar quase todas as questões no questionário aplicado ao final da aula, enumeradas pela professora no quadro e respondidas através do smartphone. Um dos colegas responde com um dos pés, escrevendo num papel no chão.

As mães dos alunos entram na sala ao fim da aula.

– Ah, Miguel, seu aniversário foi nesse domingo – diz a professora – tenho um presentinho para você.

A professora entrega a ele uma foto, que com certeza será adicionada às demais que ele possui perto da cama. É uma foto de uma parte do orquidário do Jardim Botânico. Ficou linda. Ele não pode sequer sorrir para agradecer.

Miguel mexe o dedo, sinalizando para a mãe.

– Miguel trouxe uma coisa para você também – diz a mãe de Miguel à professora.  – Não queria deixar o dia dos professores passar em branco.

O dia dos professores foi ontem, quando não houve aula. A mãe de Miguel retira da bolsa um envelope e entrega à professora, que saca de dentro um cartão manuscrito.

À media que lê o cartão, seu semblante fica mais sério, até que por fim ela olha nos olhos de Miguel e sorri com ternura, enquanto uma lágrima sai de um dos olhos.

Uma lágrima sai também do olho de Miguel. Seu corpo atrofiado e imóvel não deixa transparecer nada, mas a lágrima e a expressão no rosto da mentora mostram que, por poucos segundos pelo menos, ele conseguiu que ela se sentisse recompensada pelo trabalho árduo.

O conteúdo do cartão:

“Querida professora,
Outro dia um famoso cronista disse que muita coisa deixa de fazer sentido quando se chega perto da morte. Eu até concordo, mas acho que isso vale mais para as coisas que as pessoas conquistam para elas mesmas. Não vale para o que a gente faz pelos outros. O que a senhora faz por mim e por todos os meus colegas apesar das dificuldades, as centelhas de ideias que ajuda a criar, as oportunidades que ajuda a multiplicar, tudo isso com certeza vale e valerá sempre à pena. Quando seus dias na Terra tiverem ficado para trás, pode ter certeza de que terá deixado o legado mais precioso que existe: o futuro dos seus alunos.
A minha cela não tem portas. Tem apenas uma minúscula janela, por onde jamais conseguirei passar. Mas se essa janela está hoje totalmente aberta, é graças a pessoas como você.
Obrigado por tudo."

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