domingo, 6 de janeiro de 2013

Crônica #3 - Quem tem medo da maçã mordida?



Num belo sábado não muito distante, meu filho me chamou para sentar no chão com ele e observá-lo desenhando num bloco de notas. Por enquanto, todos os desenhos dele são iguais, parecendo-se com círculos. Quando ele diz que está desenhando o mar, desenha um círculo. Quando diz que está desenhando um carro, desenha outro círculo. Então, depois de algumas circunferências, ele pediu a minha ajuda. O desenho do palhaço foi campeão absoluto de solicitações, em resposta às quais me esforcei para colocar no papel coisas parecidas com o palhaço Patati.
Atendendo a um dos demais pedidos, desenhei um carro. Uma Kombi, na verdade. Quando vi o resultado do meu trabalho, desesperei-me. Peguei uma borracha e apaguei tudo, sob protesto dele, obviamente. Explico: a Kombi era composta por retângulos que tinham cantos arredondados, o desenho poderia parar algum dia na internet e, quem sabe, virar um MEME com milhões de compartilhamentos no Facebook. Fiquei imaginando uma dupla de homens de preto batendo à minha porta, querendo me prender por ter violado uma das patentes de uma conhecida empresa do mundo da tecnologia. Para eliminar o risco, tentei desenhar uma Kombi usando apenas quadrados com cantos retos. Ficou esquisito, mas pelo menos eliminei o risco.
Nessa situação hipotética, fiz o que muitas empresas de tecnologia precisam fazer hoje em dia, que é observar o mundo e os próprios produtos em fase de projeto com os olhos daquele concorrente que possui uma equipe jurídica super avantajada, que patenteia tudo. Um aplicativo de desenho? Não deve ter a opção de desenhar formas que se pareçam com smartphones! Um novo carro a ser lançado no mercado? Cuidado para que a janela não pareça um smartphone! Projetando uma TV que obedece aos gestos do usuário? Cuidado com o gesto de abre/fecha das mãos, melhor usar os cinco dedos para não se parecer com uma pinça! Ou melhor, se a pinça for essencial, faça-a com os dois braços esticados, como uma pinça gigante, mantendo as mãos fechadas!
Entendo que o que acabei de dizer poderia desencadear uma onda de protestos dos fãs mais ardorosos da corporação que é, talvez, o símbolo contemporâneo da inovação. Sei também que a propriedade intelectual deve ser protegida; afinal, o retorno financeiro é talvez um dos melhores estímulos à evolução tecnológica. Mas convenhamos, uma patente não deveria versar sobre algo tão genérico. Pelo menos não na minha humilde opinião. Na contenda entre gigantes do mundo dos smartphones há muitas patentes válidas em jogo, de design inclusive, mas delas excluo a do retângulo com cantos arredondados.
Imaginem se alguém resolve patentear o formato esférico, de qualquer produto industrializado, ou o cheiro do pão francês ou até mesmo o odor das fezes! A cada ida ao banheiro, depois de produzirmos a nossa valorosa “obra fisiológica”, que por vezes nos deixa orgulhosos a ponto de querer chamar alguém para apreciar, teríamos que pagar royalties. Ou então, não pagaríamos nada, desde que o odor não fosse usado para fins lucrativos (confesso que não consigo imaginar como).
É óbvio que isso não é uma discussão exata ou exaustiva, é apenas uma crônica. Talvez minha visão sobre o assunto seja simplista, e certamente não tenho a autoridade nem capacidade para dar a última palavra. Então, para fechar o texto, aproveito para desejar a você, nobre leitor, uma boa tarde, enquanto o formato de círculo não é patenteado e não preciso pagar para usar a letra “o”.

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