domingo, 28 de abril de 2013

Crônica #18 - Miguel também é feliz


Quem leu a crônica #5 (Quando a educação é especial), conheceu Miguel, um garoto que consegue mover apenas os olhos, o dedo indicador da mão direita e levemente a própria mão direita. Para os que ficaram com lágrimas nos olhos, resolvi escrever sobre uma outra situação, mostrando que a vida desses heróis também pode ter bons momentos.

Hoje o dia não está cinzento. Ao contrário daquele dia, hoje as nuvens fugiram, deixando um azul como raramente se vê lá em cima. Sob esse sol radiante Miguel e seus pais chegam à casa do seu primo, Hélcio, para almoçarem numa sexta-feira santa.

Seu pai o retira do carro e o posiciona na cadeira de rodas, tendo o cuidado de já acionar a sua interface com o mundo – um smartphone – num suporte que fica à frente da mão direita. Na casa, são recebidos pelo próprio aniversariante, um garoto rechonchudo que é um ano mais jovem que Miguel.

– Oi tia, tio. Bom dia Miguel, elegante você, heim? Podem entrar.

Miguel está usando um suéter azul claro, seu preferido, colocado cuidadosamente por seu pai a um pedido seu.

Lá dentro, estão todos na sala de estar. Sua mãe o posiciona ao lado do sofá, de frente para as duas primas menores de pouco mais de dois anos, que brincam em frente à TV. Miguel poderia passar o dia inteiro observando aquelas duas. Nenhum dos músculos da sua face demonstra, mas Miguel acha graça em tudo o que as pequenas fazem, e seus pais sabem disso. Ambas estão naquela época em que começam a dizer coisas como “Oi, tem cocô aí?” enquanto apontam para o traseiro da outra.

– E as leituras? – Pergunta Hélcio, sentando-se ao lado de Miguel.

Miguel leva algum tempo digitando a resposta.

[Agora estou lendo Dostoiévski. Um pouco cansativo, mas muito bom.]

– Ah, você e sua alta literatura! – diz Hélcio, ao ler a resposta. Logo depois, lê o complemento digitado pelo primo.

[E você?]

– Cara, agora não estou lendo nada – Hélcio fala baixinho, em tom de cumplicidade. – Claro, até a escola me mandar ler Graciliano Ramos ou algo do tipo. Mas acho que vou ler também esse Dosto alguma coisa. Impressiona mais, sabe?

Miguel, por razões óbvias, lê bastante. Na sua condição de imobilidade, a leitura é a única coisa que o permite viajar verdadeiramente. Uma fuga da dura realidade, a qual Miguel simplesmente desliga durante algumas horas, todos os dias.

– O almoço está servido – diz a tia de Miguel.

Todos se posicionam perto da mesa. Enquanto sua mãe o posiciona ao lado do primo, Miguel vai digitando algo no smartphone.

– Meu pai hoje vai pagar a conta – diz Hélcio, ao ver o pai sentando-se à cabeceira.

Miguel faz sinal para o primo ler o que ele digitou:

[Piada nova... :-)]

O primo lê em voz alta. Todos riem.

– Ô Miguel, o que é isso? Você digitou isso antes de eu falar?

– Acho que ele já adivinhava o que você ia dizer – diz o pai de Miguel, gargalhando.

Hélcio faz uma careta para o primo e senta-se. O almoço segue no mesmo tom descontraído desencadeado por Miguel.

Amigos e familiares por perto, todos felizes. É contagiante. Isso é felicidade, não apenas para Miguel, mas para qualquer um, mesmo para os que não possuem as mesmas limitações. Momentos como esse talvez sejam menos frequentes para ele, mas agora ele não se importa. Apenas agradece pela oportunidade de estar ali.

domingo, 21 de abril de 2013

Crônica #17 - Crônica cacófona



Caco Anacolutus trabalha numa empresa de marketing. Depois de um dia estafante de trabalho, decide ir a um happy hour com funcionários da empresa cliente e seus próprios colegas de trabalho. Quando chega, senta-se ao lado de Amele Cacófona, novata na empresa.

Caco, como montaremos mostra sobre esse equipamento tosco do cliente? Pergunta Cacófona, falando baixinho. Vem cá gandula, você não é juiz, heim?

Ela sempre vem com esses ditados populares. Refere-se ao cargo de Caco, ao fato de ele não ter poderes para ditar as regras do projeto.

Não sei responde Anacolutus. Não se preocupe. Nossa equipe, eu sempre a vejo superando-se. Esse projeto, acho que daremos um jeito.

Falar sobre trabalho é a última coisa que Caco quer num happy hour, então ele trata logo de mudar de assunto. Depois de três rodadas de chopp, o papo começa enfim a ficar animado, até que uma hora depois o celular de Caco toca. É sua esposa, Maria Pleonasmicleide.

Amor, você esqueceu de descer nossas malas para baixo. Não consigo subir para cima, para tentar alcançá-las no topo do armário..
Mas você, para que quer essas malas?
Vamos sair pra fora amanhã cedo, esqueceu? O tom da voz de Pleonasmicleide fica mais severo.

Um lampejo une os neurônios preguiçosos de Caco, e em um microssegundo ele se lembra da falha grave que acaba de cometer. Ele não deveria estar ali naquele happy hour, porque hoje é o dia do seu aniversário de casamento. Esqueceu-se completamente. Ele e sua esposa haviam planejado passar os dois dias seguintes fora da cidade, saindo bem cedo para se hospedarem numa pensão na Serra.

Você se esqueceu do nosso aniversário de casamento, de forma a não se lembrar dele? Pleonasmicleide diz aquilo pouco antes de Caco começar a tentar pensar em algum argumento. Onde você está? Que barulho de ruídos é esse?

Caco levanta-se.

Querida, você, veja bem...
Já entendi! Pleonasmicleide desliga.

Parado ali, de pé, perto da cabeceira da mesa, ele já começa a formular uma boa desculpa para usar quando chegar em casa, ao mesmo tempo em que saca a carteira para pagar aquilo que consumiu.

O que houve? Pergunta Cacófona. Vai dizer que o telégrafo deu problema.
Ela refere-se ao celular de Caco.
Não... Hoje é meu aniversário de casamento. Esse aniversário, eu o acabei esquecendo...
Eita, vejo uma montanha de merda se acumulando num balde gigantesco prestes a entornar sobre você! diz Geraldo Hiperbolino, segurando aquilo que provavelmente é seu décimo copo de chopp. É, meu amigo. Isso já aconteceu comigo. Chorei rios de lágrimas.
Não exagera diz Ana Eufemismina ele só ficou um pouco desprovido de memória hoje. Não se lembrou do detalhe da data.
Tá brincando? diz Hiperbolino. Esquecer o próprio aniversário de casamento é uma mancada gigantesca, imensa, a maior de todas as cagadas da história da humanidade!

Caco deixa o dinheiro sobre a mesa e despede-se.

Lindo, minto diz Almir Aliterassôncio. O dinheiro que vai deixar é só esse? Que benesse heim?
O chopp, eu só tomei um diz Caco.
Tá, ele comeu um pouquinho diz Eufemismina. Mas não foi tanto.
Quase metade da batata frita, a linguiça calabresa quase toda, o aipim... Uma montanha de comida diz Hiperbolino. Mas deixa. Dessa vez passa.

E Caco Anacolutus sai, na esperança de reverter as consequências de mais um episódio de esquecimento de datas importantes...

Crônica #17 - Crônica cacófona



Caco Anacolutus trabalha numa empresa de marketing. Depois de um dia estafante de trabalho, decide ir a um happy hour com funcionários da empresa cliente e seus próprios colegas de trabalho. Quando chega, senta-se ao lado de Amele Cacófona, novata na empresa.

Caco, como montaremos mostra sobre esse equipamento tosco do cliente? Pergunta Cacófona, falando baixinho. Vem cá gandula, você não é juiz, heim?

Ela sempre vem com esses ditados populares. Refere-se ao cargo de Caco, ao fato de ele não ter poderes para ditar as regras do projeto.

Não sei responde Anacolutus. Não se preocupe. Nossa equipe, eu sempre a vejo superando-se. Esse projeto, acho que daremos um jeito.

Falar sobre trabalho é a última coisa que Caco quer num happy hour, então ele trata logo de mudar de assunto. Depois de três rodadas de chopp, o papo começa enfim a ficar animado, até que uma hora depois o celular de Caco toca. É sua esposa, Maria Pleonasmicleide.

Amor, você esqueceu de descer nossas malas para baixo. Não consigo subir para cima, para tentar alcançá-las no topo do armário..
Mas você, para que quer essas malas?
Vamos sair pra fora amanhã cedo, esqueceu? O tom da voz de Pleonasmicleide fica mais severo.

Um lampejo une os neurônios preguiçosos de Caco, e em um microssegundo ele se lembra da falha grave que acaba de cometer. Ele não deveria estar ali naquele happy hour, porque hoje é o dia do seu aniversário de casamento. Esqueceu-se completamente. Ele e sua esposa haviam planejado passar os dois dias seguintes fora da cidade, saindo bem cedo para se hospedarem numa pensão na Serra.

Você se esqueceu do nosso aniversário de casamento, de forma a não se lembrar dele? Pleonasmicleide diz aquilo pouco antes de Caco começar a tentar pensar em algum argumento. Onde você está? Que barulho de ruídos é esse?

Caco levanta-se.

Querida, você, veja bem...
Já entendi! Pleonasmicleide desliga.

Parado ali, de pé, perto da cabeceira da mesa, ele já começa a formular uma boa desculpa para usar quando chegar em casa, ao mesmo tempo em que saca a carteira para pagar aquilo que consumiu.

O que houve? Pergunta Cacófona. Vai dizer que o telégrafo deu problema.
Ela refere-se ao celular de Caco.
Não... Hoje é meu aniversário de casamento. Esse aniversário, eu o acabei esquecendo...
Eita, vejo uma montanha de merda se acumulando num balde gigantesco prestes a entornar sobre você! diz Geraldo Hiperbolino, segurando aquilo que provavelmente é seu décimo copo de chopp. É, meu amigo. Isso já aconteceu comigo. Chorei rios de lágrimas.
Não exagera diz Ana Eufemismina ele só ficou um pouco desprovido de memória hoje. Não se lembrou do detalhe da data.
Tá brincando? diz Hiperbolino. Esquecer o próprio aniversário de casamento é uma mancada gigantesca, imensa, a maior de todas as cagadas da história da humanidade!

Caco deixa o dinheiro sobre a mesa e despede-se.

Lindo, minto diz Almir Aliterassôncio. O dinheiro que vai deixar é só esse? Que benesse heim?
O chopp, eu só tomei um diz Caco.
Tá, ele comeu um pouquinho diz Eufemismina. Mas não foi tanto.
Quase metade da batata frita, a linguiça calabresa quase toda, o aipim... Uma montanha de comida diz Hiperbolino. Mas deixa. Dessa vez passa.

E Caco Anacolutus sai, na esperança de reverter as consequências de mais um episódio de esquecimento de datas importantes...

quinta-feira, 18 de abril de 2013

O livro está próximo


Nobre leitor,

Estou escrevendo esse post para avisar que "O Próximo Alvo" está perto de ser finalmente publicado.

Só restam algumas questões de capa e de método de impressão.

Por enquanto, vocês podem conferir os capítulos 0 e 1 no site da Bookmakers!

Abraço,

Marcel T.

domingo, 14 de abril de 2013

Crônica #16 - Emoções truncadas


Observando meu fluxo de notícias no Facebook, me chama a atenção a forma um pouco peculiar como alguns expressam suas emoções ou situações do cotidiano. Não sei se para facilitar a classificação dos textos ou a busca por certos temas anos depois – em que se pese a relevância cultural dos posts para o futuro da humanidade –, o uso excessivo de hashtags (#xyz) é algo que salta aos olhos para alguém como eu, que precisa comunicar-se por escrito fora da rede social.

Então, fico imaginando como seria nossa vida cotidiana se as emoções fossem truncadas como são no Facebook. Toda uma gama de situações teriam que se resumir a dois ou três tipos de “estado de espírito”. Imagine, nobre leitor, que saio para almoçar no meio do expediente com alguns colegas de trabalho:

Estou sentado com mais três pessoas a uma mesa redonda, num restaurante à la carte. Observo o menu e digo:

– O que vocês vão querer? Aqui há arroz de pato, tornedor de mignon ao molho madeira... Eles têm também massas. Aliás, há várias opções de carne.

– Carne – diz um deles, sem desgrudar os olhos do smartphone. Imagino que se trata do filé mignon, mas não tenho tanta certeza.

– Ruim – diz o outro, igualmente hipnotizado pela tela do seu aparelho.

– Que tal optarmos por esse churrasco misto? – Pergunto eu. – Serve bem quatro pessoas.

– Bom

O três dizem exatamente a mesma palavra. Nenhum deles olha para mim. Estão todos imersos na rede social. Está decidido.

Depois do almoço está agendada uma daquelas reuniões de trabalho maçantes. Antes de entrar, comento com Genialdo e Carlos sobre os temas da reunião.

– Ruim – diz Genialdo, olhando o próprio iPhone.

– Ruim – Carlos também não desgruda do seu Samsung.

Pergunto como eles analisam a problemática dos atrasos nas entregas dos projetos, frente ao crescente nível de exigência do cliente, que quer preços cada vez mais baixos e prazos cada vez mais curtos.

– Ruim – Ambos resumem todo o problema a uma palavra, já sentando-se à mesa de reunião, continuando a olhar seus aparelhos. Percebo que todos os outros oito presentes também estão atualizando suas redes sociais.

Fora a situação acima, não quero nem imaginar como seria a produção de poesias num mundo de hashtags. Mas já dá para pensar como seriam os romances.

Texto “normal”:

“E Sofia saiu do trem. Ele já a aguardava na plataforma, de pé, vestindo o sobretudo enigmático de sempre. O coração dela pulsava. A respiração ofegante e o rubor da sua pele tornariam impossível esconder o que sentia.

Aproximando-se com os olhos magneticamente atraídos pelos dele, chega a parar a poucos centímetros de distância. O calor que aquele corpo alto e forte emanava era facilmente percebido pelos sentidos de Sofia, que agora eram todos dele e estavam especialmente aflorados. Os lábios pareciam já saber o caminho. Então, ele acariciou o seu rosto, levou a mão até a sua nuca e concretizou aquilo no que ela pensara durante toda a viagem: aqueles beijos que sempre pareciam os últimos de suas vidas.”

Texto “social”:

"Sofia saiu do trem.

#saudade #homembonito #beijo #aimeudeus #tudodebom"

domingo, 7 de abril de 2013

Crônica #15 - Ética na política?


Nobre leitor, gostaria de pedir desculpas pelo tom da crônica a seguir. Ela talvez não sirva para divertir, nem é descontraída. Eu apenas precisava escrevê-la.
Para o dia de hoje, eu pretendia publicar algo engraçado sobre figuras de linguagem. Mas quando vi uma notícia no jornal, informando que apoiadores de um determinado político estavam preparando um dossiê sobre os inimigos para tentar impedir a cassação dele, mudei de ideia. E acabou que o título desta crônica ficou parecendo uma verdadeira antítese.

Esses apoiadores, correligionários, companheiros, ou como quer que devamos chamar essa corja, querem usar a podridão que os cerca para se safarem. E quando isso acontece, vemos como estamos indo pelo caminho errado. Nas próximas eleições, escolherei meu candidato como um patrão escolhe seus subordinados:

"Ah, esse político tem uma habilidade incrível para liderar as massas. Só rouba um pouquinho, mas é em função de um bem maior." Não serve.

"Esse aqui rouba mas faz. E faz bem feito. Vê as obras, o legado que ele deixou? Claro que ficaram um pouco superfaturadas, mas fazer o quê? Nesse país ninguém consegue fazer nada sem ceder um pouco." Pelo amor de Deus! Também não serve!

"Há esse aqui. Jovem, ambicioso. Parece que tem ética. No passado se envolveu com políticos inescrupulosos, mas hoje não vejo nada de errado com ele." Subiu por meios torpes. Não serve.

"Bem, o fulano é um pouco racista, rouba um pouquinho e faz algumas coisas um pouco deploráveis, como estelionato, etc. Mas olha, é muito religioso, temente a Deus. Deve ser uma boa pessoa." Tudo um pouco... Se é um pouco podre, já é podre. Usa a religião para roubar? Esses são os piores. Não presta.

"Este político foi um guerreiro no passado. Cometeu alguns deslizes, e foi condenado, coitado. Eu votaria nele. Lutou por uma causa nobre." Pode ter sido o Jesus Cristo, a Madre Tereza ou o Dalai Lama no passado (supostamente). Se passou a roubar, não presta.

"Ih, olha esse aqui, coitado. Quase não tem tempo na TV, no horário político. As ideias dele até parecem boas, parece ser honesto (argh! que cafona!) mas não tem chance. Cadê as alianças políticas de peso, para fazer funcionar os projetos necessários ao nosso desenvolvimento?" Eu já começo a considerar esse candidato como merecedor do meu voto. Vou analisar com calma.

Certa vez, meu finado pai me disse algo como: "Se você um dia vier a ser político, não será mais meu filho." Ele era jornalista, e devia conhecer os bastidores. Espero que ele não se importe por eu tê-lo citado aqui. O nobre leitor já deve ter percebido então como simpatizo com os políticos. Mas o intuito disso tudo é simples: sugerir que sigamos, todos, o caminho da ética.

Lembremo-nos: conchavo=corrupção=futuro incerto. A esperteza, o jeitinho e as ideologias deturpadas são verdadeiros venenos quando entranhadas nos órgãos públicos.

Quando alguém chega ao ponto de precisar fazer um dossiê sobre o inimigo para se safar, está na cara que exemplo de honestidade esse alguém não é. Chega de dossiês. Sonho com um futuro de transparência total, sem dossiês, e com um povo atuante, que grita, que fica indignado, que chuta para fora os representantes que se mostrarem não merecedores do seu voto, que também dá exemplo no dia a dia... Ok, esta última foi demais. De volta à realidade...

Não estamos restritos a duas ou três opções na hora de votar. Esqueçamos a ideia de que na política temos que torcer sempre para um determinado time. Façamos nossas pesquisas. Votemos nas pessoas, e não nos times (partidos). Nosso filhos, netos e bisnetos serão mais prósperos e agradecerão.