domingo, 27 de janeiro de 2013

Crônica #6 - A perspectiva



O que é a perspectiva de um flato para alguém carregando nas próprias roupas íntimas o resultado de um incidente gastrointestinal, sendo esse resultado algo bem mais substancial que uma freada? Nada, não é mesmo? No texto abaixo, tento ilustrar esse ditado popular. Vale lembrar que qualquer semelhança com a realidade terá sido mera coincidência.


Numa bela tarde de sexta-feira, estou numa daquelas reuniões emergenciais com as quais todos que trabalham com informática estão bem acostumados. Trata-se de uma reunião para montar um "plano de guerra", para que todos daquele projeto trabalhem juntos e focados numa "sala de guerra", nos próximos dias, para que consigamos entregar o projeto no prazo, na segunda-feira. A parte do "focados" deveria ter acontecido desde o início do projeto, mas tudo bem. Somente hoje todos se deram conta de que faltava bastante para concluir tudo. Durante a fase de testes integrados, milhões de bugs transbordaram da equipe de testes, o que nos força agora a encarar um fim-de-semana cheio de trabalho, talvez até virando alguma noite.

O gerente de projetos não está com uma expressão muito amigável, mas também não aparenta estar zangado. Deve saber que nessas horas precisa mostrar algum otimismo à equipe. Afinal, se ele não for otimista, quem será?

– Pessoal – diz o gerente, à cabeceira da mesa – acho que já sabem por que estamos aqui. A gente precisa dar um gás hoje e no fim-de-semana para dar conta de entregar tudo. O cliente depende disso para poder vender os pacotes da promoção do dia dos pais.

"Um gás". Já ouvi tanto isso nos últimos dois meses... Minha profissão deve ser uma das mais gasosas que existem. O gerente continua.

– Vocês trarão agora seus computadores para a sala de reunião. Assim a gente trabalha bem focado desde já. Acho que vai dar para terminar tudo até o domingo. Pelo menos o Fantástico vocês têm o direito de ver, né?

Não sei por que, não vi graça na piada.

– Estão todos de acordo?

Todos meneam a cabeça, com exceção do digníssimo Genialdo Okara, claro, que aproveita para erguer a mão. Como sempre, está com aquela cara de esfinge, fingindo que sabe de tudo, contemplando a reunião do alto da sua soberba. Mal sabe ele que um dos principais entraves do projeto é ele mesmo.

– Eu acho que esse projeto não foi muito bem conduzido – diz Genialdo – e está meio vago qual é o meu papel.

– Ok, Genialdo – diz o gerente. – Depois a gente faz uma reunião para avaliar os erros e os acertos durante a construção da solução. Mas agora é hora de focar na entrega.
Genialdo baixa o olhar e observa seu bloco de notas, que já tem duas estrelas desenhadas.

Depois que todos os papéis estão bem definidos (uma das minhas funções será dar suporte a Genialdo, para que ele não faça besteira com o código-fonte), toda a equipe sai da sala. Cada um traz seu desktop, posicionando-o sobre a grande mesa e sentando-se para começar a trabalhar. Eu acabo me sentando ao lado de Genialdo.
Faltam dez minutos para as seis da tarde. A lista de problemas a corrigir (bugs de diversos tamanhos) é imensa. Se trabalharmos com afinco, acho que poderei ir pouco antes da meia-noite para casa, para voltar amanhã às oito da manhã. Sábado e domingo prometem.

– Onde está mesmo o diretório? – Genialdo pergunta a mim. Ele sempre esquece onde os documentos do projeto ficam.

– Aqui – pego o mouse dele e localizo o diretório no Windows Explorer.

– Ah sim. Foi um lapso meu...

Genialdo, você é um lapso, penso. Ele continua.

– Deixa eu abrir... Essa documentação está muito vaga. – Diz ele. – Deixa eu ver quantos bugs tenho na minha fila... Está aqui. Apenas – ele larga o mouse e faz sinal de aspas duplas com ambas as mãos – vinte e três bugs.

Meu Deus. A essa hora vou ter que ficar ouvindo as demonstrações de sapiência e as reclamações de Genialdo?

Cinco minutos depois, Genialdo me interrompe novamente.

– Se eu estivesse gerindo isso, eu faria diferente. Um, colheria bem os requisitos com o cliente. Dois, elaboraria uma documentação melhor. Três,... – ele demora um bom tempo para formular o terceiro ponto. Acho que três pontos são o mínimo para ele – ...três, autorizaria mais horas extras no início do projeto.

Dou um sorriso amarelo. Nem concordo, nem discordo. É fácil falar quando se está de fora. Na cabeça dele, ele seria um super gerente de projetos.

Tento voltar à resolução dos problemas, mas quando estou entrando no meu estado de concentração, sou novamente interrompido.

– Vem cá, essa saída aqui, por que a equipe de testes está dizendo que está errada?

Desisto. Ele precisa ser guiado como um bebê, mas pensa que já tem sabedoria milenar. Tem os dois Ps que arruínam o potencial de crescimento de qualquer profissional: Presunção e Preguiça. Já que vou ter que trabalhar muito durante o final de semana, aceito resignado o fato de que terei que trabalhar mais ainda, talvez uns 30% a mais, só para dar atenção a Genialdo. Afinal, o que é a perspectiva de um flato... o resto, o nobre leitor já sabe.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Crônica #5 - Quando a educação é especial


O dia está bem cinzento. Desde cedo Miguel já podia prever que aquelas nuvens densas teriam preguiça de se mover e de dar passagem aos raios do sol. Ele não gosta quando o tempo está assim. Sente muito frio, por mais que sua mãe o agasalhe. Com a cabeça cuidadosamente posicionada para contemplar a paisagem que se move, ele observa as pessoas, as ruas, os carros, tudo, menos o céu melancólico, enquanto sua mãe dirige em direção à escola. Aliás, essa é uma das coisas que Miguel mais faz: contemplar. Natural para quem consegue mover apenas os olhos e parte da mão direita. Os músculos da face não obedecem, tampouco obedecem os das pernas, braços, costas e abdômen. Depois de muita fisioterapia, ele conseguiu mover o dedo indicador da mão direita e hoje consegue mover um pouco a própria mão, o que é suficiente para digitar numa tela sensível de smartphone. Mas claro, somente se a mão e o aparelho estiverem milimetricamente posicionados. Com essa pequena interface com o mundo, ele consegue dizer o que quer, como se sente e se achou alguma piada engraçada.

Ao contrário de muitos de seus colegas de escola, Miguel, hoje com quinze anos completados no último domingo, não tem comprometimento intelectual algum. E dada a sua paralisia, tem bem mais tempo para ler do que a média dos adolescentes na sua idade. Quando lê livros em papel, precisa da ajuda de alguém para passar as páginas, mas a presença de cada vez mais livros em formato eletrônico trouxe um bom ganho de liberdade. Ele pode passar horas sozinho, lendo e passando as páginas no tablet cuidadosamente posicionado no seu campo de visão, sem incomodar seu pai e sua mãe.

Incomodar. Esse é o fardo que a sua prisão particular – seu corpo – o faz carregar. Seus pais não podem pagar um enfermeiro em tempo integral, então sua mãe não trabalha. Vive praticamente para ele, o que o incomoda profundamente. Sente-se um peso. Seu pai precisa trazer o sustento da casa, então ele depende dela para tudo, inclusive para alimentá-lo através de uma sonda e para mudar seu corpo de posição com frequência suficiente para evitar hematomas. Seus pais não demonstram, mas Miguel sabe que por vezes estão completamente exaustos. O problema é que simplesmente não há alternativa a essa vida imersa num mar de limitações, sendo constantemente salvo por esses dois anjos que o trouxeram ao mundo.

Parado no sinal de trânsito, Miguel observa uma floricultura que fica numa praça próxima ao cruzamento. Aquilo o faz lembrar-se de casa. Talvez por força de tantas barreiras, uma das coisas que ele mais gosta de fazer é observar o jardim cuidadosamente mantido por seu pai. De todas as flores, ele prefere as orquídeas brancas, que são constantemente tocadas por alguns beija-flores que entram no quintal sem pedir licença. Aquelas orquídeas tão singelas, com uma brancura levemente aveludada, têm para ele mais beleza do que os versos mais inspirados, do que os trechos mais bem construídos de todos os romances que ele já leu. Elas o tranquilizam, fazendo-o esquecer-se por alguns momentos sublimes da dura realidade e da jornada lenta e difícil que é a sua vida.

Poucos minutos depois, chegam à escola. Sua mãe estaciona, sai do carro, monta a cadeira de rodas ao lado do carro e o retira para acomodá-lo. Está nos planos dos seus pais comprar um carro maior, em que ele caiba na cadeira de rodas já montada. Por enquanto, eles seguem usando a própria força para movê-lo.

– Estamos um pouco atrasados – diz sua mãe, enquanto ajeita os cabelos dele e dá uma piscada de olho.

Com a cabeça bem apoiada, Miguel mexe o dedo, sinalizando para a mãe. Ela aciona o aplicativo de edição de textos e posiciona o smartphone no anteparo próximo à mão direita. Ele começa a digitar, lentamente.

“Inclina um pouco mais”

Ela aumenta a inclinação da cadeira de rodas para que ele possa se acomodar melhor. Antes de entrar na escola, ele move novamente o dedo, e ela aguarda a próxima mensagem.

“trouxe o envelope?”

– Sim, claro. Está aqui, na minha bolsa.

Sobem pelo elevador. Depois de passar por um corredor e cumprimentar alguns funcionários, sua mãe entra com ele na sala de aula, que já está com os outro quatro alunos. A professora os cumprimenta e sua mãe deixa a sala. A aula de português é a preferida de Miguel. A aula de hoje é sobre concordância.

Em nenhum momento aquela profissional faz expressão de pena. Pelo contrário. Ali, aqueles alunos representam a normalidade. Ela até repreende quando percebe que um deles não quer participar da aula. Sim, os deficientes também fazem birra quando não estão a fim de estudar. Talvez alguns deles e muitos dos alunos ditos “normais” não vejam propósito naquilo tudo, mas Miguel vê. Os professores que se desdobram para atender àqueles adolescentes, que respeitam o ritmo de cada um e que transformam os pequenos passos dos seus pupilos em feitos gigantes merecem toda a contrapartida daqueles cinco estudantes. Quando Miguel está ali, sente-se tratado de igual para igual por pessoas que entendem as suas limitações; enche-se de esperança, e sente sua vida tornar-se mais leve. Naquela sala, as vicissitudes tornam-se obstáculos contornáveis, e tudo parece possível. Na verdade, alguns dos momentos mais felizes ele passa ali mesmo, na escola, onde além de receber conhecimento, ele se alimenta de futuros possíveis.

Sendo um dos melhores alunos, ele consegue acertar quase todas as questões no questionário aplicado ao final da aula, enumeradas pela professora no quadro e respondidas através do smartphone. Um dos colegas responde com um dos pés, escrevendo num papel no chão.

As mães dos alunos entram na sala ao fim da aula.

– Ah, Miguel, seu aniversário foi nesse domingo – diz a professora – tenho um presentinho para você.

A professora entrega a ele uma foto, que com certeza será adicionada às demais que ele possui perto da cama. É uma foto de uma parte do orquidário do Jardim Botânico. Ficou linda. Ele não pode sequer sorrir para agradecer.

Miguel mexe o dedo, sinalizando para a mãe.

– Miguel trouxe uma coisa para você também – diz a mãe de Miguel à professora.  – Não queria deixar o dia dos professores passar em branco.

O dia dos professores foi ontem, quando não houve aula. A mãe de Miguel retira da bolsa um envelope e entrega à professora, que saca de dentro um cartão manuscrito.

À media que lê o cartão, seu semblante fica mais sério, até que por fim ela olha nos olhos de Miguel e sorri com ternura, enquanto uma lágrima sai de um dos olhos.

Uma lágrima sai também do olho de Miguel. Seu corpo atrofiado e imóvel não deixa transparecer nada, mas a lágrima e a expressão no rosto da mentora mostram que, por poucos segundos pelo menos, ele conseguiu que ela se sentisse recompensada pelo trabalho árduo.

O conteúdo do cartão:

“Querida professora,
Outro dia um famoso cronista disse que muita coisa deixa de fazer sentido quando se chega perto da morte. Eu até concordo, mas acho que isso vale mais para as coisas que as pessoas conquistam para elas mesmas. Não vale para o que a gente faz pelos outros. O que a senhora faz por mim e por todos os meus colegas apesar das dificuldades, as centelhas de ideias que ajuda a criar, as oportunidades que ajuda a multiplicar, tudo isso com certeza vale e valerá sempre à pena. Quando seus dias na Terra tiverem ficado para trás, pode ter certeza de que terá deixado o legado mais precioso que existe: o futuro dos seus alunos.
A minha cela não tem portas. Tem apenas uma minúscula janela, por onde jamais conseguirei passar. Mas se essa janela está hoje totalmente aberta, é graças a pessoas como você.
Obrigado por tudo."

domingo, 13 de janeiro de 2013

Crônica #4 - O vendedor de livros


Outro dia estava conversando com minha esposa sobre nosso futuro. Pensamos no que aconteceria se descobríssemos que pelo menos mais três filhos estivessem a caminho, de uma só vez. Bem, se eu sobrevivesse à notícia, certamente me daria conta da necessidade imediata de ganhar mais. Ela não está grávida no momento (não é isso, amor?), mas só para exercitar, imaginei o que eu poderia fazer para aumentar imediatamente a renda familiar.


Segunda-feira. Para começar bem a semana, me levanto assim que o despertador toca. Nada de soneca. O dia será muito corrido. Ajudo a preparar meu filho para a creche, engulo o café da manhã e me despeço dos cinco (ele, minha esposa e outros três em gestação). Minha mochila, preparada na noite anterior, está pesando quase cinco quilos. Pego um ônibus, depois o metrô e enfim consigo chegar ao trabalho antes das oito e meia.
A manhã segue arrastada. Não há nada urgente para fazer, mas há várias tarefas que iriam se acumular se não recebessem a devida atenção. Simplesmente faço o que meu gerente espera que eu faça, mas tento trabalhar bem, antecipando os prazos. Perder o emprego está fora de cogitação.
Depois de um rápido almoço, trabalho por mais cinco horas e não hesito. Desligo o notebook pontualmente às seis da tarde.
Vou ao banheiro e troco minha camisa social por uma camiseta escura, com uma imagem de fundo cobrindo todo o tecido que se assemelha a asfalto. Sobre a imagem, as palavras: “Leia mais”, na frente e nas costas, seguidas pelo endereço do meu site. Estou agora pronto para vender.
Saio do trabalho e sigo até um ponto de ônibus não muito distante, onde sei que não há fiscais das companhias de transporte. Minha área de trabalho consiste agora nas vias que ligam Botafogo a Ipanema, passando por Copacabana. Minha concorrência: os vendedores de balas, chocolates e canetas.
No ponto, vejo um ônibus em potencial. Faço sinal para o motorista e ele autoriza que eu entre pela porta de trás. Pego minha pesada mochila, subo e caminho até perto da roleta de entrada, na parte frontal do veículo. Retiro um dos livros e preparo a garganta, olhando para os passageiros. Tento evocar o vendedor que há dentro de mim e ajustar o discurso para o público-alvo que consigo detectar ali. Vejo que muitas pessoas desviam o olhar para a janela.
Senhoras e senhores, desculpem por interromper a tranquilidade da viagem, da sua volta para o lar, mas é que hoje eu trago na promoção o livro “O próximo alvo”, de minha autoria. Tem suspense, tem perseguição, tem romance, tem explosão. Também tem incursão policial na favela, tem tecnologia, tem histórias entrelaçadas e mais emoção que novela.
Observo os passageiros. Talvez haja uns dois ou três prestando atenção, e alguns outros ouvindo, mas não querendo demonstrar. Um ou outro sorri discretamente.
Aqueles que apreciam um bom thriller, senhoras e senhores, vão com certeza gostar do livro, assim como aqueles que apreciam um bom romance policial. Os dois gêneros literários podem ser vistos na obra. É diversão garantida para toda a família. E quem levar o livro agora, já começa a se divertir, pois há uma morte logo no primeiro capítulo. É o passatempo da viagem, senhoras e senhores.
Começo a andar pelo corredor.
– É o passatempo da sua viagem... A alegria da vovó e do vovô, uma história interessante para o pai e para a mãe, e até para os filhos crescidos. Quem vai levar? É também a diversão dos senhores quando estiverem sentados no trono. O livro perfeito para ficar no criado mudo ou no banheiro.
Posiciono-me na parte de trás do ônibus. Ninguém se manifesta. Volto a falar.
Em qualquer loja online de livraria, como a da Saraiva, Travessa ou Cultura, os senhores vão encontrar o livro por 44,90. Podem até encontrar por 39,90 em algumas poucas livrarias físicas, talvez por um pouco menos na loja online da editora. Mas só hoje, na minha mão, vão levar por apenas 29,90, com direito a autógrafo e dedicatória, e ainda levam um lindo marcador de livros. Outra oportunidade assim, senhoras e senhores, só na Bienal do livro.
Ando novamente em direção à parte frontal, exibindo o exemplar.
– Apenas 29,90, senhoras e senhores. A obra ainda tem um drama pessoal vivido pelo protagonista. Aceito Visa e Master.
Espero alguns segundos, até que ergue a mão um senhor com cabelos grisalhos e cuidadosamente penteados para trás, emoldurados por pesados óculos. Deve ser um leitor contumaz. Dirijo-me a ele, que pede para dar uma olhada no livro “de mostruário” e o folheia.
– Foi bem revisado?
– Com certeza, senhor. Passou por uma leitura crítica e por uma revisão, ambas bem criteriosas. Como pode ver, a diagramação ficou excelente.
Ele dá uma olhada nas orelhas e folheia um pouco mais.
– Tem perseguição?
– Tem sim, senhor.
– Tem algum interrogatório?
– Sim.
– Vou levar.
Ele me apresenta o cartão, e eu saco a maquininha de cartões 3G que estava presa à cintura.
– Crédito ou débito?
– Débito.
Passo o valor, devolvo o cartão e guardo a maquininha.
– Ah, faz a dedicatória para a minha esposa, por favor. O nome dela é Isaura.
Finjo escolher dentro da mochila o livro em melhor estado. Estão todos iguais, plastificados. Rasgo o plástico na frente dele, que nem o frentista que faz questão de mostrar a bomba de gasolina zerada, e abro o exemplar. Pego minha caneta e tento escrever algo criativo para dona Isaura em meio aos solavancos do ônibus. Por fim, autografo e entrego.
– Boa leitura – desejo a ele, esperando que ele recomende para os amigos.
“Um leitor a mais. Fantástico!”
Logo depois, desço do ônibus, já em Copacabana. Avalio o saldo. Na semana passada só vendi dois livros, e nessa semana já comecei bem. Vendi um logo na segunda-feira. Decido aproveitar a sorte e tentar mais algumas conduções antes de voltar para casa.


domingo, 6 de janeiro de 2013

Crônica #3 - Quem tem medo da maçã mordida?



Num belo sábado não muito distante, meu filho me chamou para sentar no chão com ele e observá-lo desenhando num bloco de notas. Por enquanto, todos os desenhos dele são iguais, parecendo-se com círculos. Quando ele diz que está desenhando o mar, desenha um círculo. Quando diz que está desenhando um carro, desenha outro círculo. Então, depois de algumas circunferências, ele pediu a minha ajuda. O desenho do palhaço foi campeão absoluto de solicitações, em resposta às quais me esforcei para colocar no papel coisas parecidas com o palhaço Patati.
Atendendo a um dos demais pedidos, desenhei um carro. Uma Kombi, na verdade. Quando vi o resultado do meu trabalho, desesperei-me. Peguei uma borracha e apaguei tudo, sob protesto dele, obviamente. Explico: a Kombi era composta por retângulos que tinham cantos arredondados, o desenho poderia parar algum dia na internet e, quem sabe, virar um MEME com milhões de compartilhamentos no Facebook. Fiquei imaginando uma dupla de homens de preto batendo à minha porta, querendo me prender por ter violado uma das patentes de uma conhecida empresa do mundo da tecnologia. Para eliminar o risco, tentei desenhar uma Kombi usando apenas quadrados com cantos retos. Ficou esquisito, mas pelo menos eliminei o risco.
Nessa situação hipotética, fiz o que muitas empresas de tecnologia precisam fazer hoje em dia, que é observar o mundo e os próprios produtos em fase de projeto com os olhos daquele concorrente que possui uma equipe jurídica super avantajada, que patenteia tudo. Um aplicativo de desenho? Não deve ter a opção de desenhar formas que se pareçam com smartphones! Um novo carro a ser lançado no mercado? Cuidado para que a janela não pareça um smartphone! Projetando uma TV que obedece aos gestos do usuário? Cuidado com o gesto de abre/fecha das mãos, melhor usar os cinco dedos para não se parecer com uma pinça! Ou melhor, se a pinça for essencial, faça-a com os dois braços esticados, como uma pinça gigante, mantendo as mãos fechadas!
Entendo que o que acabei de dizer poderia desencadear uma onda de protestos dos fãs mais ardorosos da corporação que é, talvez, o símbolo contemporâneo da inovação. Sei também que a propriedade intelectual deve ser protegida; afinal, o retorno financeiro é talvez um dos melhores estímulos à evolução tecnológica. Mas convenhamos, uma patente não deveria versar sobre algo tão genérico. Pelo menos não na minha humilde opinião. Na contenda entre gigantes do mundo dos smartphones há muitas patentes válidas em jogo, de design inclusive, mas delas excluo a do retângulo com cantos arredondados.
Imaginem se alguém resolve patentear o formato esférico, de qualquer produto industrializado, ou o cheiro do pão francês ou até mesmo o odor das fezes! A cada ida ao banheiro, depois de produzirmos a nossa valorosa “obra fisiológica”, que por vezes nos deixa orgulhosos a ponto de querer chamar alguém para apreciar, teríamos que pagar royalties. Ou então, não pagaríamos nada, desde que o odor não fosse usado para fins lucrativos (confesso que não consigo imaginar como).
É óbvio que isso não é uma discussão exata ou exaustiva, é apenas uma crônica. Talvez minha visão sobre o assunto seja simplista, e certamente não tenho a autoridade nem capacidade para dar a última palavra. Então, para fechar o texto, aproveito para desejar a você, nobre leitor, uma boa tarde, enquanto o formato de círculo não é patenteado e não preciso pagar para usar a letra “o”.